Teatro: Hell (Hector Babenco)

Hell é como uma noite de embriaguez e insanidade em que relembramos e revivemos os momentos mais marcantes e sufocantes de nossas vidas. Sem qualquer linearidade ou exatidão de fatos, o que denuncia um estado de saúde física e mental deplorável, os acontecimentos seguem como em um sonho que mescla sem pudor passado e presente, levando seus dois personagens a uma jornada de desgraça inevitável, irreversível… e irresistível.

Mas nesta história, não existem vilões. Estas duas pessoas são as únicas responsáveis por suas tragédias.

Adaptação do romance homônimo de Lolita Pille, uma parisiense de vinte e poucos anos que testemunhou e vivenciou muitas das experiências relatadas neste seu primeiro livro (que não li), Hell é também o nome adotado por sua protagonista, a rica e auto-inconsciente Ella, que vive seus dias e noites à base de bebidas, drogas, antidepressivos e qualquer sexo. Certo dia, a garota sai de casa para fazer um aborto como sairia para comprar cigarros. Ato consumado, ela vai fazer compras e é golpeada por um súbito e fugaz lapso de lucidez ao se deparar com uma peça de roupa que simplesmente não caberia nela: ela está na sessão Baby Dior, onde começa a chorar aos olhos de um estranho, que lhe oferece ajuda. Este é Andrea, o playboyzinho mais filho da puta de Paris, que sofre neste encontro seu próprio estarte de transformação, se apaixonando por esta que é a mais insuportável putinha da cidade-luz.

Mergulhado em uma atmosfera pesada e suja, Hell apresenta uma Bárbara Paz que não podemos mais chamar de ex-Casa dos Artistas; aqui, Paz se estabelece como atriz em uma atuação de inacreditável entrega e alcance dramático – embora tenha faltado um pouco de exposição física que fragilizasse ainda mais a personagem. Por outro lado, Ricardo Tozzi se revela um mero adereço de cena que, infelizmente, ganhou algumas falas. Apático e desconfortável em cena desde sua primeira aparição, Tozzi desperdiça excelentes diálogos (“Sou um artista e minha obra sou Eu”) e ainda enfraquece um dos momentos mais intensos da peça ao empregar uma voz abafada que tenta expor alguma emoção.

Da mesma forma, a mixagem de som (esse termo é aplicado ao teatro?) tira o brilho de uma trilha sonora excitante e intensa, com bruscas interrupções que abrem passagem para as falas da protagonista. Em contrapartida, a mise en scène surge impecável ao lado do trabalho de iluminação de Beto Bruel que brinca deliciosamente com sombras, takes e contraluzes em momentos estratégicos – como quando Hell, posicionada no centro do palco, faz gestos obscenos enquanto discursa sobre o ex-namorado.

Emocionalmente complexa e clautrofóbica, Hell é uma das mais belas, tristes e sujas obras do ano. E intensa a ponto de despertar pequenos devaneios no espectador. Se Clarice Lispector fosse uma parisiense rica e drogada que viveu a juventude nos anos 2000, ela teria escrito o livro que deu origem a esta peça.

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