Apenas Uma Noite (Massy Tadjedin)

(Alerta de spoilers: este artigo disseca detalhes técnicos, narrativos e dramáticos da obra.)

Trair é simultaneamente um desespero e um alívio, nos mostra Apenas Uma Noite, filme escrito e dirigido por Massy Tadjedin e protagonizado por Keira Knightley e Sam Worthington. Estreando na direção depois de debutar em Hollywood como roteirista, a iraniana Tadjedin volta ao cinema depois de 7 anos de silêncio – seu último trabalho foi o denso Camisa de Força, também com Knightley – e retorna com uma obra tão delicada quanto a inevitável melancolia que surge na segunda taça de vinho em uma noite solitária.

Casal jovem e bem-sucedido, os protagonistas Joanna e Michael compartilham uma intimidade que vai além do casamento e se destacam pela amizade evidente que há entre os dois. E mesmo que Michael pareça frio demais para o calor de Joanna, poucas cenas são suficientes para nos fazer entender como funciona a dinâmica harmoniosa entre eles: a princípio, ela é o porto seguro que promove pequenos alívios para o marido, como uma pausa para respirar; mais tarde, a dinâmica se complementa quando ele precisa lembrá-la da maturidade da relação deles ao apontar que “não há babaquices” entre os dois.

Da mesma forma, esses primeiros minutos se encarregam de revelar a importância de Joanna para Michael (que parece sempre à beira da angústia – e voltaremos a isso em breve), a mostrando como uma parceira adorável e adorada pelos amigos e colegas de trabalho dele. Neste sentido, não é menos admirável como Joanna recebe imenso apoio e estímulo do marido para se dedicar mais ao seu trabalho como escritora.

O que nos leva ao segundo ato, quando o casal se separa por um dia e cada um precisa lidar com o seu próprio tipo de tentação extraconjugal. Saindo de Manhattan para uma viagem de negócios, Michael é afetado pela sexualidade contagiante da colega de trabalho Laura, que nutre uma declarada (e inevitavelmente correspondida) atração física por ele. Perto de casa, Joanna é procurada por Alex, um amável (e francês) ex-namorado e, por uma noite, encara a experiência de reviver uma história de amor impraticável (“Geografia. E o momento”) e presente (“Eu ainda penso em você”, um lindo “I still replay you”).

O problema é que uma discussão na noite anterior, justamente sobre a tensão sexual entre Michael e Laura, teve uma função dupla: tornar impossível para Michael ignorar a tentação ao seu lado, provavelmente confessando o desejo para si mesmo pela primeira vez, e fazer Joanna se questionar se seu casamento é um erro. O que, agora, têm duas consequências: Joanna imagina se Alex seria a decisão correta (e o aparecimento pontual do rapaz é tão oportuno quanto simbólico) e Michael finalmente encara suas vontades.

É revelador, porém, como marido e esposa administram seus conflitos de maneira essencialmente parecida, já que ambos parecem procurar um limite para o que é permitido. Contudo, é nas diferenças das ações que se escondem os sentimentos mais expressivos, e enquanto Joanna flerta descompromissadamente com Alex, curiosa e até divertida com a situação, chegamos à angústia de Michael, que encara seu desejo por Laura como um tipo de droga, parecendo suplicar com o olhar que ela pare, que ela se afaste, que ela não queira mais nada dele porque ele certamente vai entregar tudo o que tem. E não é injusto imaginar, com isso, se a explicação de Michael ao dizer que pensa em Joanna não significa, na verdade, que ele mentiu à pergunta de Laura, e que seus pensamentos são não de precaução e sim de arrependimento.

Mas a profundidade narrativa de Apenas Uma Noite não se reserva apenas ao roteiro e aos personagens sensíveis. A direção de arte de Tim Grimes (O Lutador) e a fotografia de Peter Deming (Camisa de Força, Cidade dos Sonhos, Uma Noite Alucinante) merecem destaque por simbolizarem de forma inteligente o arco dramático dos dois casais (embora eu não goste, intimamente, dessas trajetórias). Vejamos.

A princípio, os encontros de Michael e Laura acontecem em ambientes sensualmente escuros, e impessoais, como os bares onde eles ficam sozinhos. Por outro lado, os lugares que recebem Joanna e Alex são sempre iluminados e calorosos, especialmente o restaurante onde eles jantam com um casal de amigos – e mesmo o reencontro deles, em uma manhã fria, acontece em frente a um aconchegante café, o que ajuda a ressaltar o calor entre eles. Ainda assim, vale notar que os momentos e ambientes mais iluminados de toda a projeção são aqueles no apartamento de Michael e Joanna.

Mais tarde, porém, o casal em Nova York acaba tendo uma franca conversa em uma cozinha às escuras, e logo vai parar em um quarto de hotel igualmente banhado em sombras (e mesmo que esses novos espaços ainda carreguem traços de intimidade, a mudança de tom é significativa). Em contrapartida, o terceiro ato leva o casal em viagem para uma piscina (pública: impessoal) fartamente iluminada, e não demora muito para entendermos o propósito da cena, que finalmente apresenta Laura com alguma profundidade e, o mais importante, a fragiliza para Michael. O que, inevitavelmente, leva ao ato da cena seguinte. E a transição para esta cena, por sua vez, destaca a intrigante montagem de Suzan E. Morse, velha parceira de Woody Allen até o final dos anos 90 e atual co-montadora da série Louie.

Inserindo brevíssimos e silenciosos flash forwards do que acontecerá em seguida, a estratégia de Morse de certa forma inverte esse elemento e transforma a cena atual em um longo flash back, sendo os inserts, então, breves lapsos de consciência dos personagens no momento atual. O que é compreensível quando entendemos que Michael está tentando poupar sua culpa, se prendendo ao momento em que ainda não tinha cometido um erro.

Mas isto só faz sentido quando percebemos que Morse e Tadjedin usam esta mesma lógica nos primeiros minutos de projeção, quando vemos flashes de Joanna no táxi, voltando para casa: aqui, a longa sequência da festa que assistimos é nada menos do que o pensamento da escritora ruminando as coisas que ela viu e sentiu ao longo daquela noite.

O que nos leva de volta ao tema da produção e ao comentário que abre este texto. Traição é sempre um desespero e um alívio: a angústia do desejo, o refresco da satisfação; o sabor do diferente, o medo de perder o que já se tem. E se falo pouco e sempre tangencialmente sobre os coadjuvantes de Eva Mendes e Guillaume Canet, é porque eles têm menos importância como personagens do que como estopim e, assim, interessam apenas como os símbolos que representam: respectivamente, o desespero que corrói os esforços de Michael e o alívio que faz promessas de vida nova para Joanna.

Inesperada combinação de nascidos-clássicos como Closer – Perto Demais e Antes do Pôr-do-Sol, Apenas Uma Noite é melhor dirigido do que escrito, o que traz uma parcela de problemas que o diminuem diante de seus primos ricos. Embora mereça créditos pela condução elegante do espectador pelas revelações das histórias dos três casais, apresentando diálogos inteligentes e coerentes na exposição, menos valor, talvez, pode ser atribuído ao provável sexismo de Tadjedin, que parece tentar amenizar os atos de Joanna ao fazê-la recuar. E só não aponto esse tendencionismo com acusação porque Joanna jamais é tratada como inocente, nem por si mesma.

Mas isso pode ser suficiente para explicar a forte opinião negativa da crítica e do público pelo filme – embora não a justifique, como demonstrei nas últimas 1.200 palavras. Entendo, ainda assim, essa reação cheia de incômodos. Em 2011, sai enojado e irritado da sessão de Namorados Para Sempre, assumindo que essas sensações refletiam a qualidade do filme, e apenas depois de algumas semanas fui entender que aqueles sentimentos surgiram justamente em função da eficiência narrativa e dramática da obra, o que a enriquece imediatamente.

Eu ficaria feliz se Apenas Uma Noite percorresse esse caminho com o público. Ele certamente merece e, para mim, é desde já um pequeno e querido clássico que certamente visitarei algumas vezes de quando em quando.

Mas só o tempo dirá se esta relação será uma atração magnética e nociva ou um porto seguro aonde irei me refugiar nos momentos de incerteza.

(Ou, respectivamente, minhas versões de Laura e Alex.)

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6 comentários sobre “Apenas Uma Noite (Massy Tadjedin)

  1. Terminei de ver o filme com um questionamento, qual é a pior traição: a carnal (Michael e Laura) ou a sentimental (Joanna e Alex)?? o ato consumado ou a idealização do que poderia ter sido?
    Parabéns pela critica!!

  2. Excelente texto, cara! Vou começar a acompanhar teu blog. Nossas opiniões quanto a Apenas Uma Noite são similares, mas não iguais. A questão do sexismo me incomodou profundamente. Tive a impressão de que o filme todo foi construído para mostrar que o Homem cai em tentação, mas a Mulher não. Mas me contenho em minhas críticas, pois reconheço que minha opinião é uma visão bastante parcial, já que vi o filme num momento (num dia específico até) um tanto tenso do meu antigo relacionamento, em que estavam em jogo justamente algumas das questões que o filme trabalha.

  3. Obrigado, Ghuyer! E seja bem-vindo. 😀

    Sobre o sexismo, este será, sem dúvida, o tema mais discutido da produção, sempre, e provavelmente deixará a obra ainda mais rica com o tempo – já que o contexto íntimo do espectador está sempre mudando.

    E veja que curioso: a construção do filme, a divisão temática, digamos, parece mais ter sido entre Traição Física e Traição Emocional (como a Andreia comentou) do que como tendências masculinas e femininas. Mas não deixa de ser suspeito como Tadjedin direcionou os casos, o que é revelador.

  4. Achilles,
    Já te falei isto antes (rs), mas parabéns! Excelente crítica de um filme angustiante, que ao mesmo tempo me incomodou e me agradou. Espero que escreva mais vezes, pois textos como este só confirmam o seu talento.
    Forte abraço.

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