Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera

Em determinado momento de Barba Ensopada de Sangue, romance do escritor brasileiro Daniel Galera, dois personagens discutem como seria ouvir de um oráculo a descrição precisa do que vai acontecer em sua vida. A pessoa com quem você vai se casar, os familiares que você irá perder, o emprego que você terá até envelhecer, como e quando você vai morrer. Nesse momento, um dos personagens afirma que isso seria perturbador enquanto o outro, que é o próprio protagonista, diz que não se importaria. Curiosamente, é justamente o destino dele que o leitor já conhece desde o prólogo do livro, um flashforward que revela contos e lendas sobre o sujeito que acabou se tornando um mito involuntário. Essa decisão narrativa está longe de ser gratuita, porém, e sim totalmente orgânica, fundamental para o tema e o tom da obra. O que a torna uma experiência fascinante, mas ainda assim um pouco triste, profundamente nostálgica e – sim, também perturbadora.

Mas várias outras escolhas técnicas de Galera também merecem destaque. A narração e seu ponto de vista que, de tão próximo, às vezes parece ser em primeira pessoa, se conecta a ausência de limite entre diálogos e prosa, que são interrompidos por interlúdios que trazem conversas e depoimentos de outras pessoas sobre o protagonista.

Interlúdios que, sem atrapalhar demais a narrativa, se revelam funcionais quando percebemos um detalhe: apesar de a narração estar sempre muito perto de seu herói, é mais através dessas interrupções que conhecemos a personalidade dele. E, de fato, nenhum pensamento do rapaz parece revelar o que realmente se passa em sua mente, o que sugere um sujeito que ou mal conhece a si mesmo ou está em paz absoluta consigo e o mundo e parou de julgar as coisas há muito tempo.

As duas opções surgem válidas em um ou outro momento da história, mas a leitura aos poucos nos leva a apostar mais na segunda ideia. E essa é apenas uma das surpresas do livro, considerando o evento que dá início à narrativa e a condenada relação familiar que terminará com um garoto de dezessete anos jamais conhecendo o próprio tio. Sem contar, é claro, a perigosa situação em que o protagonista se coloca desde o primeiro dia que chega a uma nova cidade.

Portador de uma rara disfunção neurológica que o impede de memorizar e reconhecer rostos, inclusive o próprio, o rapaz se muda para uma cidade praiana onde seu avô foi misteriosamente assassinado quarenta anos antes, justamente a fim de investigar tal caso. Não demora, porém, para ele descobrir que o episódio pode ter sido um atentado de vingança, já que o avô era odiado e temido por toda a cidade, nem para que tais ressentimentos ressurjam em um ou outro morador apenas pela mera presença dele, que é extremamente parecido com seu antepassado. Assim, o jovem acaba se tornando um alvo ambulante, andando por aí com o rosto de um homem cheio de inimigos, e também uma vítima fácil, já que é incapaz de memorizar ameaças e saber que determinada pessoa a sua frente é um desses inimigos.

O romance de Daniel Galera, contudo, está longe de ser um suspense ou policial. Sim, é perturbador que uma simples frase como “Dá pra ser muito feliz aqui, rapaz” possa soar tão ameaçadora, mas a maior parte da leitura é preenchida apenas com prosa calma, contemplativa e cheia de sensibilidade. Como a descrição sensorial das coisas que o protagonista vai se lembrar após uma noite de amor com a namorada cujo rosto ele vai esquecer, o que deixa o drama muito mais perto, na verdade, de ser um conto de autoavaliação e redescoberta.

Contribui para isso o tom nostálgico que acompanha a história, efeito do flashforward de abertura, que nos faz antecipar, ou melhor, reconhecer os eventos que estamos testemunhando – como o apartamento no prediozinho bege, a prostituta branquinha cheia de tatuagens, a cachorra Beta pegando gosto pela água e até mesmo o confronto que deixa o sujeito no estado que dá título ao livro. Cenas que lentamente constroem uma bomba catártica para o leitor. Afinal, ver acontecer eventos anunciados previamente é um misto de prazer, pela recompensa do reconhecimento, e tristeza, porque cada momento apenas confirma o destino final do personagem.

Introspectivo e curioso (ele diz sim a praticamente qualquer convite que recebe), e também intrigante por conta de uma estranha habilidade orácula, apesar de jamais ter seu nome citado e ter uma única descrição física marcante (a gorda e crespa barba que ele ostenta), o protagonista de Barba Ensopada de Sangue é para o leitor uma encarnação vívida, frágil e heroica do mito que ele se tornou – um privilégio que seu jovem sobrinho jamais ganha.

Com isso, é fácil compreender por que o garoto guarda tanta curiosidade e fascínio pelo tio. Uma relação que, por sua vez, ajuda a esclarecer a obsessão do próprio sujeito com o mistério de seu avô, e que torna o desfecho do livro ainda mais triste – por mostrar como feridas emocionais, ao contrário de pessoas, são tão difíceis de esquecer. Mesmo quando o passado se torna um oráculo que nos dá a chance de escolher melhor nosso futuro.

FICHA TÉCNICA:

Título: Barba Ensopada de Sangue
Autor: Daniel Galera
Páginas: 423
Editora: Companhia das Letras

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