O PREDESTINADO (Spierig Brothers)

O PREDESTINADO é uma experiência única. Com duas tramas tão distintas que poderiam render dois filmes completamente diferentes em temática, tom e desenvolvimento, o filme combina suas duas personalidades de forma orgânica, equilibrada e mais eficiente do que boa parte de seus parceiros de gênero – de ambos os gêneros.

Personagem de um mundo que logo se revela em um contexto de ficção-científica, o protagonista é enviado ao passado a fim de encontrar um terrorista que já é caçado há décadas por sua agência de inteligência. Disfarçado como garçom em um bar na Nova York dos anos 70, ele se aproxima de um cliente habitual, o intrigante escritor que atende pelo pseudônimo de “Mãe Solteira”, um sujeito solitário e amargo demais, que parece bastante satisfeito com a atuação do terrorista que está assolando a cidade – e por isso não demora muito para o espectador acreditar que o encontro não foi casual e que o agente está naquele bar justamente para encontrar o escritor, que deve ser o terrorista.

De fato, o garçom claramente inicia uma espécie de interrogatório/investigação disfarçado de bate-papo descontraído, e é aí que a produção toma um caminho inesperado. Pela próxima meia hora de projeção, o roteiro leva o espectador por outra viagem no tempo, desta vez em flashbacks que contam o passado do escritor como uma garotinha órfã, solitária e superdotada, que um dia parece ganhar a chance de realizar o grande sonho de ser astronauta.

Mas não se engane, a surpresa não está na revelação da transição do sujeito, e sim no tom corretamente dramático que a narrativa assume ao contar a biografia do escritor, uma história que fica gradualmente mais estranha (mas nunca surreal em seus relatos de machismo absurdo), e que inclui um recrutamento cheio de mistérios, uma gravidez não planejada, um sequestro inexplicável e um crime médico desconcertante (basta dizer que determinada cirurgia jamais teria sido feita em um paciente do sexo masculino e pode ser tema de intrigantes debates sobre misoginia e certas fobias).

Aos poucos, o desabafo do escritor levanta uma ou outra informação que parece confirmar a suspeita do viajante do tempo, até que uma reviravolta simples, coerente e surpreendente de verdade abre o terceiro ato da história ainda na metade do filme. A partir daí o espectador é finalmente mergulhado na trama de ação prometida desde a primeira cena, e para isso atravessa uma trama tão complexa, elegante e chocante que poderia ter sido imaginada pelos melhores roteiristas de Doctor Who (se estes fossem muito mais corajosos do que são).

Não é um problema que pelo menos duas reviravoltas sejam facilmente antecipadas pelo espectador, pois quando elas se confirmam na tela, a sensação não é de previsibilidade, e sim de coerência. Claro que antecipamos isso, pensamos, é o que fazia sentido. Mas é um problema, porém, que o desfecho faça uso da problemática montagem-explicativa-de-Os-Suspeitos para revelar seus segredos, e ainda peque pelo exagero na abordagem, já que o recurso é usado duas vezes – e desnecessário nas duas vezes, chegando a comprometer o impacto dramático de certo confronto. Contudo, a resposta apresentada nesse desfecho é, mais uma vez, coerente com tudo o que vimos antes, o que não deixa de ser gratificante.

Mas o grande destaque do filme é sem dúvidas a composição da jovem Sarah Snook, que até pode ser beneficiada pelo excelente trabalho de maquiagem da produção, eficaz tanto no envelhecimento da moça quanto em sua masculinização, mas nada teria funcionado tão bem se não fosse o desempenho da atriz, que, de um lado, convence nos trejeitos e na gravidade da voz, e do outro, nos impressiona com complexidade de emoções que experimenta ao relembrar sua história de vida. Notem, particularmente, a frieza no olhar quando o escritor responde certa pergunta dizendo “um propósito”. Dura um instante brevíssimo, mas suficiente para concluirmos o mesmo que o protagonista: o sujeito é o terrorista que ele procura.

(Curiosidade bobinha: em vários momentos, me peguei pensando em como seria se Jane e Mãe Solteira tivessem sido interpretados por, respectivamente, Emma Stone e Leonardo DiCaprio. Não consegui tirar os dois da cabeça, e me sinto culpado por isso.)

Com pelo menos dois momentos de forte impacto dramático (eu chorei copiosamente quando me dei conta do que estava testemunhando), O Predestinado é um filme raro tanto como drama quanto como exemplar de ficção-científica, mas certamente palatável para fãs das duas categorias.

Mais do que raro, é um filme único – e de partir o coração.

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Um comentário sobre “O PREDESTINADO (Spierig Brothers)

  1. Ótima crítica. Também adorei o filme e também achei a “Mãe Solteira” a cara do Leonardo di Caprio.

    Só recomendo que ponha um aviso de Spoilers no começo, pois você entregou boa parte das ótimas surpresa que o filme traz.

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